quando trabalhei no necrotério todo dia entrava em conflito existencial. não entendia a questão primordial. a finitude estava lá, estampada com seus miolos inertes e sem cognição. minha alma irônica tentava dar significado qualquer aquilo que se desgastava sob supervisão dos meus olhos. não entendia como meu labor não era considerado violência. toda força, todo corte, toda serra elétrica e toda imperícia anatômica. e, ao final, encher o peito de jornal velho e, com uma agulha curva, endireitar a bagunça toda que eu tinha deixado naquele antigo depósito de sonhos, paixões e dores. e eu, depósito de incongruências, pensava o quão divino seria trocar de lugar, em um acesso de empatia e asfixia do futuro, cocriando o meu ansiado fim.